Eu sei que sofres em silêncio e que cobras a ti mesmo Esse sigilo cinzento que cresce em ti Sentes que morres por dentro e esqueces cada momento Nesse sigilo cinzento que cresce em ti Infância vai embora memoria vã e inglória Criança adulta que hoje em dia ainda tem memórias Isto não é um som de amor, mas isto tem história Eu 'tou a tentar perceber por que é que a minha mãe chora Infância vai embora, memória vã Criança que ainda chora pela mamã Quatro crianças numa casa sem posses Vêem a mãe ser violentada sem hipóteses E ela não tem mais forças cada vez faz mais esforços O pai traz terror a casa e nem tem remorsos Ele foi nascido e criado no porto Minha avó dizia que desde miúdo ele tinha o diabo no corpo Um dia ainda aparecia morto esfaqueado ou afogado num poço Que trazia maldade no rosto e com a idade revelou-se Porque nos odeias tanto, não temos culpa de ter nascido Sóbrio das uma de santo com a desculpa de teres bebido Porque descarregas em nós os erros por ti cometidos Porque renegas a família que devias ter protegido? Era suposto passarmos fome e tu vires com casacos novos E essa puta que nem tem nome, tu da-lhes uns sapatos novos Nos sermos pobres p'ra ti é uma brincadeira Não vês que ela só ama a tua carteira Mas é com ela que gastas, é ela que tanto adoras O sexo dela vicia e merece ir jantar fora Só te explora não vivem amor nem histórias Só tem o corpo p'ra te dar e em troca, dás-lhe ouro e jóias A nós mandas a cara que mais valia ir pedir esmola Bastava que te importasses, perguntasses como vai a escola? Queres jogar a bola, mas nem vontade mostras Custava demonstrares que tinhas saudades nossas? Nunca te esforças só queres é noites loucas Olha para a minha mãe, não vês o quanto a magoas Quando a atraiçoas só nos amaldiçoas Percebe que somos nós que sofremos com as tuas escolhas Não respeitas a mulher que depositaste confiança À que juraste amor eterno quando trocaste alianças Alimentaste esperanças nessa juventude intensa Tu prometeste amá-la na saúde e na doença Cada atitude uma sentença, causaste tanto sofrimento Ela morre por dentro, sentada a um canto inerte Enquanto berras ameaças e dizes que um dia a matas A sufocas com o cinto e a deixas no chão de gatas E ela grita "Não me batas, os miúdos estão a ver" Mas ele não quer saber, porque ele só quer bater E se nos portarmos mal, ela encobre e assume a culpa Para nos livrar da raiva desse pai filha da puta Ela só dorme, não come está na cama todo o dia Memórias são tão más que não há fotografias Já nem da atenção às filhas, não dá colo, não dá mimos Só chora e afoga a dor em álcool e comprimidos Sai à rua com vergonha a enxaguar as lágrimas Óculos de sol e um cachecol para disfarçar as marcas E está tão farta do martirio a que se expõe Que só pensa em suicídio cada vez que vê um comboio Ela sente-se depressiva, e a vizinha que espreita Diz não te rendas a essa sina, não vês como te desleixas Tens que pensar nos teus filhos e em ti, porque não o deixas? Mas ela ainda o ama e não quer apresentar queixa Ainda tem esperança que ele volte para seu lado Diz que as putas com que ele anda o devem ter embruxado O amor é cego, o amor é pecado Enquanto houver amor ele será perdoado A família não quer saber, nem se chegam à nossa beira Dizem que não se querem meter, mas metem lenha na fogueira Só desdenham a vida alheia com moral de ser parente Mas se for p'ra enxer a geleira já ninguém se chega a frente Porque ninguém chega a tempo e nós vivemos com medo Na escola sem amigos, em casa sem brinquedos O SASE é que paga os livros, a mãe não tem capital E vivemos nesta casa esquecida pelo pai natal Mãe, se eu pudesse dava-te milhões em papel Na janela a brincar com aviões de papel Um dia eu serei rei num castelo e dou-te um reino Diz aquele puto gordinho sempre com o mesmo fato de treino O que relato é um retrato e não um guião estudado De facto, não há união nesta união de facto E so queria que hoje em dia não se notassem mazelas E esquecer o que se vivia nessa casa à luz de velas Minha mãe está envelhecida guarda o seu trauma p'ra ela A morte da minha avó levou sua alma com ela Sempre viveu insegura e nunca teve apoio em nada Mulher amargurada nunca se sentiu amada Se eu pudesse, construia a maquina do tempo P'ra mudar o passado e poder dar-to de presente O que plantasse no passado daria frutos no presente E hoje em dia o teu passado teria um futuro diferente Eu faria com que tu escolhesses o melhor pra ti Daria mais que o mundo p'ra tu voltares a sorrir O meu desejo profundo é que nunca tivesses sofrido Mesmo que eu nunca tivesse nascido Nos escombros das sombras que assombram em mim Eles sondam-me, encontram-me e sopram-me ao ouvido Insistem p'ra eu contar o que sempre escondi E esta talvez seja a letra mais dificil que eu escrevi Eu sei que sofres em silêncio e que cobras a ti mesmo Esse sigilo cinzento que cresce em ti Sentes que morres por dentro e esqueces cada momento Nesse sigilo cinzento que cresce em ti Infância vai embora memória vã e inglória Criança adulta que hoje em dia ainda tem memórias Isto não é um som de amor só porque tem drama E a minha mãe chora porque é humana Infância vai embora memória vem Criança que ainda chora pela mamã